PRIMEIRAS IMPRESSÕES
A paisagem era belíssima naquela manhã de terça-feira do dia 24 de março. Descíamos o Rio Arari rumo a algumas comunidades ribeirinhas. Ao longo da viagem muitos pássaros e mata de ambos os lados do rio. Sentíamos-nos realmente missionários saindo de casa às cinco da manhã para visitar aquele povo de Deus tão esquecido pela Igreja. O clima no barco era de alegria entre nós padres e a pessoa que dirigia o barco. A expectativa era grande para chegarmos às comunidades e visitarmos as famílias e celebrarmos a Eucaristia.
Depois de quase duas horas de viagem Pe. Vanderlei chegou à primeira comunidade, desembarcamos e descemos as bagagens uma bolsa com algumas roupas e os materiais usados para a missa. Depois dessa breve parada seguimos viagem por mais três horas e o calor e sol já começava a incomodar. Além disso, o estômago já começava a dar sinais de fome e a sede nos obrigava a tomar a água já morna que tínhamos levado de casa.
Como o povo de Deus que caminhou pelo deserto, depois de mais de cinco horas, avistamos a terra prometida: a comunidade São José do Caracará. Paramos o barco no trapiche (espécie de estacionamento de barcos) e logo descemos. Muitas crianças e adolescentes ali estavam. Fiquei animado devem estar esperando o padre para a missa. Contudo, aquelas crianças não estavam nem sabendo que o padre viria a comunidade e ainda pior a maioria das crianças eram de famílias protestantes. Quando comecei a conversar entendi que ali perto funcionava uma escola e as crianças estavam é saindo da escola para irem para suas casas. Uma delas me perguntou: “O senhor é o professor que veio aplicar a prova Brasil?” Comecei a rir e disse que não, que era padre e estava chegando para celebrar a missa. De repente no trapiche só estava o comandante do barco e eu, as crianças foram para suas casas num desfile bonito de canoas e rabetas (espécie de embarcação motorizada, mas pequena).
Saindo do trapiche avistei a escola, um posto de saúde e uma igrejinha que mais parecia uma casa. Muito simples e discreta, era a capela de São José. Pensei é aqui a missa, e pelas informações já fazia mais de um ano que estavam sem a celebração da Eucaristia. Fiquei refletindo que bom eu estar aqui para celebrar a missa, realmente sou um missionário vou poder oferecer a esse povo pelo poder que Deus me concedeu no ministério presbíteral a Eucaristia, o Corpo e o Sangue de Cristo. Estava me sentindo muito feliz por estar ali e todo o cansaço da viagem, a fome e o calor parece que nem incomodava.
Andamos mais um pouco e encontrei uma adolescente que me informou onde era a casa da pessoa que coordenava comunidade. Era muito perto e em poucos minutos estávamos batendo palmas na porta da casa. Uma senhora saiu e disse: “Padre o que o Senhor está fazendo aqui”. Ela já me conhecia, pois tinha me visto numa reunião na cidade. Eu respondi: “Vim visitar a comunidade e celebrar a missa”. Ela com uma cara de poucos amigos afirmou: “ Nós estávamos esperando para a missa no dia de São José que foi a semana passada. Hoje nem sabíamos que o senhor viria”. Então fui entender que o “pombo” correio não tinha dado o recado de que a missa seria naquele dia. A mulher disse que o marido havia saído e logo estaria de volta para vermos o que íamos fazer.
Fiquei sentado numa sombra na frente da casa e a mulher lá de dentro perguntou se já tínhamos almoçado. Afirmei que não. O tempo se passou e por volta das 13:00 ela saiu com um pratinho e dois copos de suco. No prato algumas bolachas e um suco de bacuri (fruta típica da região). Ela me disse: “Padre preparei um lanche para o senhor e o rapaz que dirige o barco”. Como o povo de Deus no deserto aquelas bolachas e o suco era o maná que desceu do céu. Apesar de a bolacha ser pouca e o suco não estar tão gelado como eu desejava, não tivemos dúvida comemos e bebemos como se fosse o leite e mel dos hebreus. Como “capivara que está afogando não escolhe barranco”, assim tratamos de comer e beber o que tinha. Esse foi o nosso almoço daquele dia. O estômago pedia um arroz com feijão mineiro quentinho feito na hora, mas esse era apenas um sonho impossível.
Pelas três horas da tarde chegou o senhor que coordenava a comunidade. A surpresa dele foi semelhante a da esposa quando viu o padre sentado na grama em frente a sua casa. Depois de algumas conversas ele sugeriu dizendo: “Padre, acho melhor o senhor ir embora e voltar um dia quando todos estiverem avisados da missa”. Ele demonstrava uma certa irritação e minha presença parecia que o incomodava. Sugeri que procurasse avisar as famílias e eu celebraria no outro dia a missa, as nove da manhã. Pelo olhar não gostou da sugestão, mas aceitou de má vontade mandar alguns bilhetes e avisar as famílias já que eu fazia questão de celebrar. Eu disse a ele que não teria problema, que ele avisasse quem fosse possível. O senhor disse com um olhar bem desconfiado: “ É padre, acho que não vai vir ninguém”. Disse a ele: “Não tem problema, eu vim aqui para celebrar a eucaristia, e celebrarei com aqueles que vierem”.
O resto da tarde passei no barco, pois ele estava ocupado e não poderia me acompanhar para as visitas. O barco virou casa. Armei a rede e fiquei lendo um pouco e dei até alguns cochilos. Mas o sossego acabou logo, as crianças da escola vinha até o trapiche e ficavam pisando em cima do barco. Mas não tinha escolha, ninguém nos tinha convidado para hospedarmos em casa o jeito era ficarmos na embarcação. Terminaram as aulas e a criançada toda saiu da escola e foram pegando suas embarcações e o dia estava indo e começava a escurecer, era por volta de 17:45.
Já era quase noite quando ouvimos uma voz que nos chamava para irmos nos alimentar. Pensei logo, gosto muito de suco e de bolacha, mas de novo não. Queria algo salgado para que o estômago não ficasse gritando a noite toda. Quando vi na mesa um prato de feijão, com charque e muita farinha tive a certeza que o Senhor não abandona os seus ungidos. Pela fome sentida aquilo era um banquete, semelhante ao que o Pai misericordioso preparou para o filho pródigo. Comemos com a boca boa até ficarmos satisfeitos. Tomei um pouco de água, agradeci muito pela janta e voltamos para o barco que a esta hora estava escondido pela escuridão da noite.
Chegando ao barco pelas 19:00 já era hora de dormir, mas como dormir sem tomar banho. A saída foi pular nas águas escuras e lamacentas do Rio Caracará. Não sei se o banho limpou ou sujou ainda mais, o certo é que a toalha limpou o corpo. Bom, de estômago cheio e banho tomado era hora de cama, ou melhor, de rede. Deitado na rede apaguei a lanterna e esperava dormir tranqüilo depois do dia cansativo e cheio de surpresas. Mas por sinal as surpresas não tinham ainda terminado. O barco em que estávamos era já bem velho e tinha muitos entulhos guardados, mas eu só fui notar isso na escuridão. E isso só me ocorreu quando comecei a ouvir uns barulhos dentro do barco, e sem saber o que era fiquei assustado e logo acendi meu farolete, o barco estava infestado de baratas que davam o seu passeio noturno. Não tinha o que fazer o jeito era dividir o espaço com aqueles bichinhos nojentos. Sem contar os carapanãs (pernilongos) que zuniam no ouvido. Dormir mesmo que é bom só pelas três da manhã, depois que o cansaço já tinha vencido a lucidez de lembrar que as baratas poderiam querer passear por cima de meu corpo. Esqueci que tinham baratas e carapanãs e dormi até as seis quando acordei com o balanço do barco.
Depois de uma noite mal dormida o melhor é tomar um banho para despertar, mas a água do rio estava muito fria e suja. Na falta de outra opção o jeito foi pular na água sem pensar na temperatura e nem na sujeira do rio. Depois do banho fui procurar um café. Pedi em uma casa próxima e a senhora me ofereceu um café com bolachas. Agradeci e voltei para o barco para me preparar para a missa que seria às nove horas.
Quando foi oito horas já estava na pequena capela esperando o povo para a missa. Afinal era a Solenidade da Anunciação do Senhor, um dia especial em que o Salvador foi anunciado que viria habitar a nossa história. Estava feliz por poder celebrar a Eucaristia ali naquela comunidade, apesar dos desencontros. Fiquei sozinho na capela até as oito e trinta quando chegou o coordenador da comunidade e sua esposa. Ficamos conversando até quase nove horas, falando da comunidade, de seus problemas e conquistas. Deram nove horas éramos três para a celebração. Fui aconselhado pelo coordenador a esperar mais um pouco. Continuamos nossa conversa e lá pelas nove e trinta éramos nove pessoas para a missa. Resolvemos iniciar a celebração, mesmo com poucas pessoas. Na minha cabeça pensava: “já está bom, somos nove, achei que seríamos só três”.
Iniciei a missa com alegria e tudo parecia ir bem. Apesar de poucas pessoas eles estavam animados, os cantos eram bonitos e todos cantavam. Após a oração da coleta uma mocinha foi proclamar a Palavra, apesar da boa vontade dela ninguém entendeu nada do que foi proclamado. E assim foi também o salmo e a segunda leitura, parecia até que estava lendo em outra língua ( com todo o respeito me senti nas aulas de hebraico do Pe. Alzir, em que não entendia quase nada). Claro que temos que valorizar a boa vontade e a disponibilidade das pessoas se dispõe a proclamar a Palavra, pois em muitas comunidades temos que implorar para que alguém o faça. Proclamei o Evangelho e fiz uma boa homilia, mas não sei se atingiu a assembléia, pois alguns conversavam enquanto falava. Por isso, pedi a participação deles na reflexão. Um senhor que estava sentado no primeiro banco falou uns cinco minutos sem parar e por sinal sem nenhum nexo com a proposta feita. Outros também falaram um pouco. Depois da reflexão, credo e preces, passamos para a liturgia eucarística. E como a comunidade não tem sacrário, pedi que levantasse a mão as pessoas que fossem comungar para que pudesse consagrar o suficiente. A princípio ninguém levantou a mão, repeti a pergunta e o senhor do banco da frente e uma senhora atrás levantaram timidamente a mão. Consagrei as partículas e somente nós três comungamos. Terminada a missa me despedi das pessoas que ali estavam e parti para outra comunidade.
Durante a viagem fiquei me questionando: passei mais de cinco horas viajando, passei fome, dormi no barco em meio as baratas e somente nove pessoas foram à missa e somente duas comungaram. E o pior é que parece piada, mas me disseram depois que o senhor do primeiro banco era meio maluco e que não poderia ter dado comunhão para ele. Nesta hora a pergunta que veio a minha cabeça é: o que estou fazendo aqui passando por todas essas dificuldades? Fiquei um pouco decepcionado. Mas logo lembrei de um texto bíblico que foi proclamado na minha ordenação, onde São Paulo diz assim: “Somos atribulados por todos os lados, mas não desanimados; somos postos em extrema dificuldade, mas não somos vencidos por nenhum obstáculo; somos perseguidos, mas não abandonados; prostrados por terra, mas não aniquilados (2Cor 4,8-9).” Esse texto bíblico fez com que me alegrasse novamente e entendesse que apesar das dificuldades, Deus estava comigo e que não precisava de uma capela cheia de gente para sentir sua presença.
Vagando em pensamentos e contemplando a paisagem, comecei a refletir que motivos humanos tinha para estar ali. E comecei a me lembrar de uma conversa que Pe. Vanderlei e eu tínhamos tido um dia na casa paroquial. Humanamente as motivações para a missão não valem a pena, pois ficamos longe das pessoas que amamos, longe de nossa terra, de nossas famílias, de nossa Igreja de origem, do carinho do nosso povo. Sem contar a questão do conforto, das facilidades de locomoção e de comunicação. A única motivação para estar na missão é a fé. Não existe outra motivação plausível capaz de motivar alguém a sair de sua terra para viver numa realidade completamente diferente da sua. Pela fé pude entender que todo esforço, ansiedade e sofrimento valem a pena, pois meu coração estava muito feliz por saber que Deus havia me chamado para esta missão e que estava tentando ser fiel. Sem perceber o barco encostou-se no trapiche, tínhamos chegado a comunidade do Aracajú.
A paisagem era belíssima naquela manhã de terça-feira do dia 24 de março. Descíamos o Rio Arari rumo a algumas comunidades ribeirinhas. Ao longo da viagem muitos pássaros e mata de ambos os lados do rio. Sentíamos-nos realmente missionários saindo de casa às cinco da manhã para visitar aquele povo de Deus tão esquecido pela Igreja. O clima no barco era de alegria entre nós padres e a pessoa que dirigia o barco. A expectativa era grande para chegarmos às comunidades e visitarmos as famílias e celebrarmos a Eucaristia.
Depois de quase duas horas de viagem Pe. Vanderlei chegou à primeira comunidade, desembarcamos e descemos as bagagens uma bolsa com algumas roupas e os materiais usados para a missa. Depois dessa breve parada seguimos viagem por mais três horas e o calor e sol já começava a incomodar. Além disso, o estômago já começava a dar sinais de fome e a sede nos obrigava a tomar a água já morna que tínhamos levado de casa.
Como o povo de Deus que caminhou pelo deserto, depois de mais de cinco horas, avistamos a terra prometida: a comunidade São José do Caracará. Paramos o barco no trapiche (espécie de estacionamento de barcos) e logo descemos. Muitas crianças e adolescentes ali estavam. Fiquei animado devem estar esperando o padre para a missa. Contudo, aquelas crianças não estavam nem sabendo que o padre viria a comunidade e ainda pior a maioria das crianças eram de famílias protestantes. Quando comecei a conversar entendi que ali perto funcionava uma escola e as crianças estavam é saindo da escola para irem para suas casas. Uma delas me perguntou: “O senhor é o professor que veio aplicar a prova Brasil?” Comecei a rir e disse que não, que era padre e estava chegando para celebrar a missa. De repente no trapiche só estava o comandante do barco e eu, as crianças foram para suas casas num desfile bonito de canoas e rabetas (espécie de embarcação motorizada, mas pequena).
Saindo do trapiche avistei a escola, um posto de saúde e uma igrejinha que mais parecia uma casa. Muito simples e discreta, era a capela de São José. Pensei é aqui a missa, e pelas informações já fazia mais de um ano que estavam sem a celebração da Eucaristia. Fiquei refletindo que bom eu estar aqui para celebrar a missa, realmente sou um missionário vou poder oferecer a esse povo pelo poder que Deus me concedeu no ministério presbíteral a Eucaristia, o Corpo e o Sangue de Cristo. Estava me sentindo muito feliz por estar ali e todo o cansaço da viagem, a fome e o calor parece que nem incomodava.
Andamos mais um pouco e encontrei uma adolescente que me informou onde era a casa da pessoa que coordenava comunidade. Era muito perto e em poucos minutos estávamos batendo palmas na porta da casa. Uma senhora saiu e disse: “Padre o que o Senhor está fazendo aqui”. Ela já me conhecia, pois tinha me visto numa reunião na cidade. Eu respondi: “Vim visitar a comunidade e celebrar a missa”. Ela com uma cara de poucos amigos afirmou: “ Nós estávamos esperando para a missa no dia de São José que foi a semana passada. Hoje nem sabíamos que o senhor viria”. Então fui entender que o “pombo” correio não tinha dado o recado de que a missa seria naquele dia. A mulher disse que o marido havia saído e logo estaria de volta para vermos o que íamos fazer.
Fiquei sentado numa sombra na frente da casa e a mulher lá de dentro perguntou se já tínhamos almoçado. Afirmei que não. O tempo se passou e por volta das 13:00 ela saiu com um pratinho e dois copos de suco. No prato algumas bolachas e um suco de bacuri (fruta típica da região). Ela me disse: “Padre preparei um lanche para o senhor e o rapaz que dirige o barco”. Como o povo de Deus no deserto aquelas bolachas e o suco era o maná que desceu do céu. Apesar de a bolacha ser pouca e o suco não estar tão gelado como eu desejava, não tivemos dúvida comemos e bebemos como se fosse o leite e mel dos hebreus. Como “capivara que está afogando não escolhe barranco”, assim tratamos de comer e beber o que tinha. Esse foi o nosso almoço daquele dia. O estômago pedia um arroz com feijão mineiro quentinho feito na hora, mas esse era apenas um sonho impossível.
Pelas três horas da tarde chegou o senhor que coordenava a comunidade. A surpresa dele foi semelhante a da esposa quando viu o padre sentado na grama em frente a sua casa. Depois de algumas conversas ele sugeriu dizendo: “Padre, acho melhor o senhor ir embora e voltar um dia quando todos estiverem avisados da missa”. Ele demonstrava uma certa irritação e minha presença parecia que o incomodava. Sugeri que procurasse avisar as famílias e eu celebraria no outro dia a missa, as nove da manhã. Pelo olhar não gostou da sugestão, mas aceitou de má vontade mandar alguns bilhetes e avisar as famílias já que eu fazia questão de celebrar. Eu disse a ele que não teria problema, que ele avisasse quem fosse possível. O senhor disse com um olhar bem desconfiado: “ É padre, acho que não vai vir ninguém”. Disse a ele: “Não tem problema, eu vim aqui para celebrar a eucaristia, e celebrarei com aqueles que vierem”.
O resto da tarde passei no barco, pois ele estava ocupado e não poderia me acompanhar para as visitas. O barco virou casa. Armei a rede e fiquei lendo um pouco e dei até alguns cochilos. Mas o sossego acabou logo, as crianças da escola vinha até o trapiche e ficavam pisando em cima do barco. Mas não tinha escolha, ninguém nos tinha convidado para hospedarmos em casa o jeito era ficarmos na embarcação. Terminaram as aulas e a criançada toda saiu da escola e foram pegando suas embarcações e o dia estava indo e começava a escurecer, era por volta de 17:45.
Já era quase noite quando ouvimos uma voz que nos chamava para irmos nos alimentar. Pensei logo, gosto muito de suco e de bolacha, mas de novo não. Queria algo salgado para que o estômago não ficasse gritando a noite toda. Quando vi na mesa um prato de feijão, com charque e muita farinha tive a certeza que o Senhor não abandona os seus ungidos. Pela fome sentida aquilo era um banquete, semelhante ao que o Pai misericordioso preparou para o filho pródigo. Comemos com a boca boa até ficarmos satisfeitos. Tomei um pouco de água, agradeci muito pela janta e voltamos para o barco que a esta hora estava escondido pela escuridão da noite.
Chegando ao barco pelas 19:00 já era hora de dormir, mas como dormir sem tomar banho. A saída foi pular nas águas escuras e lamacentas do Rio Caracará. Não sei se o banho limpou ou sujou ainda mais, o certo é que a toalha limpou o corpo. Bom, de estômago cheio e banho tomado era hora de cama, ou melhor, de rede. Deitado na rede apaguei a lanterna e esperava dormir tranqüilo depois do dia cansativo e cheio de surpresas. Mas por sinal as surpresas não tinham ainda terminado. O barco em que estávamos era já bem velho e tinha muitos entulhos guardados, mas eu só fui notar isso na escuridão. E isso só me ocorreu quando comecei a ouvir uns barulhos dentro do barco, e sem saber o que era fiquei assustado e logo acendi meu farolete, o barco estava infestado de baratas que davam o seu passeio noturno. Não tinha o que fazer o jeito era dividir o espaço com aqueles bichinhos nojentos. Sem contar os carapanãs (pernilongos) que zuniam no ouvido. Dormir mesmo que é bom só pelas três da manhã, depois que o cansaço já tinha vencido a lucidez de lembrar que as baratas poderiam querer passear por cima de meu corpo. Esqueci que tinham baratas e carapanãs e dormi até as seis quando acordei com o balanço do barco.
Depois de uma noite mal dormida o melhor é tomar um banho para despertar, mas a água do rio estava muito fria e suja. Na falta de outra opção o jeito foi pular na água sem pensar na temperatura e nem na sujeira do rio. Depois do banho fui procurar um café. Pedi em uma casa próxima e a senhora me ofereceu um café com bolachas. Agradeci e voltei para o barco para me preparar para a missa que seria às nove horas.
Quando foi oito horas já estava na pequena capela esperando o povo para a missa. Afinal era a Solenidade da Anunciação do Senhor, um dia especial em que o Salvador foi anunciado que viria habitar a nossa história. Estava feliz por poder celebrar a Eucaristia ali naquela comunidade, apesar dos desencontros. Fiquei sozinho na capela até as oito e trinta quando chegou o coordenador da comunidade e sua esposa. Ficamos conversando até quase nove horas, falando da comunidade, de seus problemas e conquistas. Deram nove horas éramos três para a celebração. Fui aconselhado pelo coordenador a esperar mais um pouco. Continuamos nossa conversa e lá pelas nove e trinta éramos nove pessoas para a missa. Resolvemos iniciar a celebração, mesmo com poucas pessoas. Na minha cabeça pensava: “já está bom, somos nove, achei que seríamos só três”.
Iniciei a missa com alegria e tudo parecia ir bem. Apesar de poucas pessoas eles estavam animados, os cantos eram bonitos e todos cantavam. Após a oração da coleta uma mocinha foi proclamar a Palavra, apesar da boa vontade dela ninguém entendeu nada do que foi proclamado. E assim foi também o salmo e a segunda leitura, parecia até que estava lendo em outra língua ( com todo o respeito me senti nas aulas de hebraico do Pe. Alzir, em que não entendia quase nada). Claro que temos que valorizar a boa vontade e a disponibilidade das pessoas se dispõe a proclamar a Palavra, pois em muitas comunidades temos que implorar para que alguém o faça. Proclamei o Evangelho e fiz uma boa homilia, mas não sei se atingiu a assembléia, pois alguns conversavam enquanto falava. Por isso, pedi a participação deles na reflexão. Um senhor que estava sentado no primeiro banco falou uns cinco minutos sem parar e por sinal sem nenhum nexo com a proposta feita. Outros também falaram um pouco. Depois da reflexão, credo e preces, passamos para a liturgia eucarística. E como a comunidade não tem sacrário, pedi que levantasse a mão as pessoas que fossem comungar para que pudesse consagrar o suficiente. A princípio ninguém levantou a mão, repeti a pergunta e o senhor do banco da frente e uma senhora atrás levantaram timidamente a mão. Consagrei as partículas e somente nós três comungamos. Terminada a missa me despedi das pessoas que ali estavam e parti para outra comunidade.
Durante a viagem fiquei me questionando: passei mais de cinco horas viajando, passei fome, dormi no barco em meio as baratas e somente nove pessoas foram à missa e somente duas comungaram. E o pior é que parece piada, mas me disseram depois que o senhor do primeiro banco era meio maluco e que não poderia ter dado comunhão para ele. Nesta hora a pergunta que veio a minha cabeça é: o que estou fazendo aqui passando por todas essas dificuldades? Fiquei um pouco decepcionado. Mas logo lembrei de um texto bíblico que foi proclamado na minha ordenação, onde São Paulo diz assim: “Somos atribulados por todos os lados, mas não desanimados; somos postos em extrema dificuldade, mas não somos vencidos por nenhum obstáculo; somos perseguidos, mas não abandonados; prostrados por terra, mas não aniquilados (2Cor 4,8-9).” Esse texto bíblico fez com que me alegrasse novamente e entendesse que apesar das dificuldades, Deus estava comigo e que não precisava de uma capela cheia de gente para sentir sua presença.
Vagando em pensamentos e contemplando a paisagem, comecei a refletir que motivos humanos tinha para estar ali. E comecei a me lembrar de uma conversa que Pe. Vanderlei e eu tínhamos tido um dia na casa paroquial. Humanamente as motivações para a missão não valem a pena, pois ficamos longe das pessoas que amamos, longe de nossa terra, de nossas famílias, de nossa Igreja de origem, do carinho do nosso povo. Sem contar a questão do conforto, das facilidades de locomoção e de comunicação. A única motivação para estar na missão é a fé. Não existe outra motivação plausível capaz de motivar alguém a sair de sua terra para viver numa realidade completamente diferente da sua. Pela fé pude entender que todo esforço, ansiedade e sofrimento valem a pena, pois meu coração estava muito feliz por saber que Deus havia me chamado para esta missão e que estava tentando ser fiel. Sem perceber o barco encostou-se no trapiche, tínhamos chegado a comunidade do Aracajú.
Pe. Odair
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